Nós, mulheres, socializadas para sermos umas bestas.
É fácil afogar as magoas em materialismos. Os impulsos vêm te todos os lados. Quer das redes sociais, quer daquela serie que vimos para queimar tempo. Ou daquela miúda gira no supermercado. Não exige qualquer exercício mental, nem pede sequer isso. Caso contrário daríamos por nós a pensar se é ético comprar esse material. Se a pessoa que o produziu ganha um ordenado decente. Se precisamos sequer ou se é mais uma forma de calar o vazio, a insegurança, que é em si criada por todo
Estive quase a fazer click numa compra motivada por um momento de insegurança. Este ano tem sido um caos. Engordei no covid como tantos outros e não tenho forças mentais para sequer me motivar a perder os três quilos que ganhei. Até porque se for sincera, em muitos aspetos o meu rabo ficou maior e mais redondo e dou por mim a questionar se esse não era suposto ser o tamanho dele nos últimos anos. No entanto apesar disso tudo, ontem num momento de socialização, anda devidamente mascarado, dei por mim a olhar para uma mulher mais magra que eu, com um vestido giro. Eu, vestida com uma das minhas camisas favoritas, mesmo assim não me senti boa o suficiente.
Durante esse jantar dei por mim a cobiçar o vestido, até consegui saber a marca de que era e provavelmente poderia pagá-lo se estivesse a venda, afinal é uma daquelas marcas das massas. Mas uma rápida vista de olhos pelo site da marca, no telemóvel, permitiu perceber que era provavelmente de uma coleção anterior. Também dei por mim a ver essa mesma mulher a evitar comer demais. A disciplinar a filha de vinte anos para não comer demasiado pão das entradas. Enquanto eu enfiava pão com pate pela boca a baixo, um atrás do outro, empurrado por vinho alentejano e água, alternadamente. Era um aniversario de familiares. O calor não me motivava a beber o proverbial copo a mais.
Vou mudar de trabalho. E em muitos aspetos sei que o ano de covid foi horrível, perdi completamente a vontade de escrever e afoguei-me em trabalho. Sei que valeu a pena, e ajudou a não ouvir o caos do mundo e a dissonância de opiniões versus factos, que tanto parece dominar o mundo agora. Vou mudar de trabalho e sinto-me demasiado bem com isso, consegui uma posição numa empresa bem melhor do que a que estava, e isso massajou suficientemente o meu ego, que em geral está de boa saúde. Mesmo assim, naquele momento enquanto cobiçava o vestido daquela familiar, que estava no meio do seu ritual de auto controlo de não comer demais, e não deixar a filhar comer demais, para ficar do mesmo tamanho e continuar a caber naquele vestido pequeno, senti-me insegura. E quis afogar as magoas em saldos.
Em vez disso dormi mal sobre o assunto, afinal de contas comi demais ao jantar e estava com uma ligeira indisposição. E dei por mim a escrever novamente. Sei que não vai curar as minhas inseguranças, nem fazer me sentir melhor ou pior pelo facto de me sentir um bocado superior por nunca me ter deixado a mim mesma fazer uma dieta louca para caber no tamanho mais aceitável da sociedade, do meu corpo. Sinto que tenho de tirar esse sentimento de mim, dado que não me faz melhor ou pior. Sei que julgar essa familiar me faz um bocado besta, mas sei que é endémico. Nós, mulheres, somos socializadas para ser umas bestas umas para com as outras, como que a lutar contra os nossos instintos naturais para sermos decentes. E por isso nesse momento a minha fuga foi os instintos. Não comprei, no entanto, nenhum vestido. Acordei, fiz exercício e vi uns filmes e relaxei. Afinal de contas tenho os últimos dias ferias para descansar. E um vestido novo definitivamente não trás felicidade.